Alimentos Ultraprocessados: O que São e Como Identificá-los na Prática ClínicaIntrodução
- Cirmed Brasil

- 18 de jul.
- 9 min de leitura
Introdução
A alimentação moderna passou por transformações profundas nas últimas décadas, com o crescimento exponencial do consumo de produtos industrializados que vão muito além do processamento tradicional de alimentos. Estes produtos, denominados alimentos ultraprocessados, representam hoje mais da metade do consumo energético total em países de alta renda como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, e entre um quinto e um terço do consumo em países de renda média como Brasil, México e Chile.
Para profissionais de saúde que atuam na linha de frente do cuidado médico, compreender o que são os alimentos ultraprocessados e saber identificá-los tornou-se uma competência essencial. A crescente evidência científica demonstra associações consistentes entre o consumo destes produtos e o desenvolvimento de obesidade, hipertensão, doenças cardiovasculares, síndrome metabólica e até mesmo alguns tipos de câncer.
Este artigo apresenta um guia prático baseado na classificação NOVA, desenvolvida por pesquisadores da Universidade de São Paulo, para identificar alimentos ultraprocessados na prática clínica e orientar pacientes sobre escolhas alimentares mais saudáveis.

O Sistema de Classificação NOVA
Fundamentos da Classificação
O sistema NOVA representa uma abordagem inovadora para classificar alimentos, diferindo fundamentalmente dos sistemas tradicionais que se baseiam apenas em nutrientes. Desenvolvido por Carlos Monteiro e colaboradores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, este sistema classifica todos os alimentos em quatro grupos distintos, considerando a extensão e o propósito do processamento industrial ao qual são submetidos.
A classificação NOVA considera todos os métodos físicos, biológicos e químicos utilizados durante o processo de fabricação de alimentos, incluindo o uso de aditivos. Esta abordagem holística permite uma compreensão mais completa do impacto do processamento industrial na qualidade nutricional e nos efeitos à saúde dos alimentos consumidos.
Os Quatro Grupos da Classificação NOVA
Grupo 1: Alimentos não processados ou minimamente processados
Este grupo inclui alimentos in natura ou que foram alterados por processos industriais como remoção de partes não comestíveis, secagem, trituração, fracionamento, torrefação, fervura, pasteurização, refrigeração, congelamento, acondicionamento em recipientes ou fermentação não alcoólica. Nenhum destes processos adiciona sal, açúcar, óleos, gorduras ou outras substâncias alimentares ao alimento original.
Exemplos incluem grãos, leguminosas, vegetais, frutas, castanhas, leite pasteurizado, carnes resfriadas e outros alimentos cujo objetivo principal do processamento é estender a vida útil, facilitar o armazenamento e tornar a preparação mais fácil ou diversificada.
Grupo 2: Ingredientes culinários processados
São substâncias obtidas diretamente de alimentos do grupo 1 ou da natureza, como óleos, gorduras, açúcar e sal. São criados por processos industriais como prensagem, centrifugação, refinamento, extração ou mineração. Seu uso destina-se à preparação, tempero e cozimento de alimentos do grupo 1.
Grupo 3: Alimentos processados
Produtos industriais fabricados pela adição de sal, açúcar ou outras substâncias do grupo 2 aos alimentos do grupo 1, utilizando métodos de preservação como enlatamento, engarrafamento e, no caso de pães e queijos, fermentação não alcoólica. O processamento aqui visa aumentar a durabilidade dos alimentos do grupo 1 e torná-los mais agradáveis ao modificar ou realçar suas qualidades sensoriais.
Grupo 4: Alimentos ultraprocessados
São formulações de ingredientes, principalmente de uso industrial exclusivo, que resultam de uma série de processos industriais. Estes produtos são o foco principal deste artigo e representam a categoria de maior preocupação para a saúde pública.
Definindo Alimentos Ultraprocessados
Características Fundamentais
Os alimentos ultraprocessados são formulações de ingredientes, principalmente de uso industrial exclusivo, que resultam de uma série de processos industriais complexos. Estes processos envolvem várias etapas e diferentes indústrias, começando com o fracionamento de alimentos integrais em substâncias que incluem açúcares, óleos, gorduras, proteínas, amidos e fibras.
Estas substâncias são frequentemente obtidas de poucos alimentos vegetais de alto rendimento (milho, trigo, soja, cana-de-açúcar ou beterraba) e do processamento de carcaças animais, geralmente provenientes de criação intensiva. Algumas dessas substâncias são então submetidas à hidrólise, hidrogenação ou outras modificações químicas.
Processos de Fabricação
Os processos subsequentes envolvem a montagem de substâncias alimentares modificadas e não modificadas com pouco ou nenhum alimento integral, utilizando técnicas industriais como extrusão, moldagem e pré-fritura. Cores, sabores, emulsificantes e outros aditivos são frequentemente adicionados para tornar o produto final palatável ou hiperpalatável.
Os processos terminam com embalagens sofisticadas, geralmente utilizando materiais sintéticos. Açúcar, óleos, gorduras e sal, utilizados para fazer alimentos processados, são frequentemente ingredientes de alimentos ultraprocessados, geralmente em combinação.
Ingredientes Característicos
Os ingredientes característicos dos alimentos ultraprocessados podem ser divididos em duas categorias principais:
Substâncias alimentares de uso culinário nulo ou raro:
Variedades de açúcares (frutose, xarope de milho rico em frutose, concentrados de suco de frutas, açúcar invertido, maltodextrina, dextrose, lactose)
Óleos modificados (óleos hidrogenados ou interesterificados)
Fontes de proteína (proteínas hidrolisadas, isolado de proteína de soja, glúten, caseína, proteína do soro, carne mecanicamente separada)
Aditivos cosméticos:
Sabores e realçadores de sabor
Cores
Emulsificantes e sais emulsificantes
Adoçantes
Espessantes
Agentes antiespumantes, de volume, carbonatantes, espumantes, gelificantes e vitrificantes
Impactos na Saúde: Evidências Científicas
Qualidade Nutricional Comprometida
Estudos populacionais conduzidos em diversos países, utilizando principalmente pesquisas nacionais de consumo alimentar, demonstraram consistentemente que os alimentos ultraprocessados são tipicamente produtos de alta densidade energética, ricos em açúcar, gorduras não saudáveis e sal, e pobres em fibra dietética, proteína, vitaminas e minerais.
Esta composição nutricional desfavorável não é acidental, mas resulta diretamente dos processos de fabricação e dos ingredientes utilizados. O fracionamento de alimentos integrais remove naturalmente muitos nutrientes essenciais, enquanto a adição de substâncias de uso industrial exclusivo introduz componentes que o organismo humano não está evolutivamente adaptado a processar em grandes quantidades.
Efeitos Metabólicos
Estudos experimentais indicam que os alimentos ultraprocessados induzem respostas glicêmicas elevadas e têm baixo potencial de saciedade. Além disso, criam um ambiente intestinal que seleciona micróbios que promovem diversas formas de doenças inflamatórias.
A textura modificada destes produtos, resultado dos processos de fabricação, permite consumo mais rápido e em maiores quantidades, comprometendo os mecanismos naturais de regulação do apetite. A hiperpalatabilidade, obtida através da combinação específica de açúcar, gordura e sal, pode levar a padrões de consumo similares aos observados em dependências.
Associações com Doenças Crônicas
Estudos transversais e longitudinais demonstraram que aumentos na participação dietética de alimentos ultraprocessados resultam em deterioração da qualidade nutricional da dieta geral e aumento da obesidade, hipertensão, doenças coronarianas e cerebrovasculares, dislipidemia, síndrome metabólica, distúrbios gastrointestinais e câncer total e de mama.
A evitação de alimentos ultraprocessados tornou-se a "regra de ouro" das diretrizes dietéticas nacionais emitidas recentemente em países latino-americanos, refletindo o crescente reconhecimento científico dos riscos associados ao seu consumo.
Guia Prático para Identificação
Método de Identificação por Rótulos
A indústria alimentícia não é obrigada a declarar nos rótulos dos alimentos os processos utilizados em seus produtos e muito menos os propósitos destes processos. Em alguns casos, isso pode tornar a identificação confiante de alimentos ultraprocessados difícil para consumidores, profissionais de saúde e formuladores de políticas.
No entanto, existe uma forma prática de identificar se um produto é ultraprocessado: verificar se sua lista de ingredientes contém pelo menos um item característico do grupo de alimentos ultraprocessados da classificação NOVA.
Substâncias Não Utilizadas em Cozinhas
Substâncias alimentares não utilizadas em cozinhas aparecem no início ou no meio das listas de ingredientes de alimentos ultraprocessados. Estas incluem:
Proteínas hidrolisadas
Isolado de proteína de soja
Glúten, caseína, proteína do soro
Carne mecanicamente separada
Frutose, xarope de milho rico em frutose
Concentrado de suco de frutas
Açúcar invertido, maltodextrina, dextrose, lactose
Fibra solúvel ou insolúvel
Óleo hidrogenado ou interesterificado
A presença na lista de ingredientes de uma ou mais dessas substâncias alimentares identifica um produto como ultraprocessado.
Aditivos Cosméticos
Os aditivos cosméticos estão no final das listas de ingredientes de alimentos ultraprocessados, juntamente com outros aditivos. Incluem sabores, realçadores de sabor, cores, emulsificantes, sais emulsificantes, adoçantes, espessantes e agentes antiespumantes, de volume, carbonatantes, espumantes, gelificantes e vitrificantes.
Alguns dos aditivos cosméticos mais frequentemente utilizados, como sabores, realçadores de sabor, cores e emulsificantes, são geralmente fáceis de identificar nas listas de ingredientes. Frequentemente são expressos como uma classe, como "aromatizantes" ou "sabores naturais" ou "sabores artificiais", ou seus nomes são seguidos por sua classe, como "glutamato monossódico (realçador de sabor)" ou "cor caramelo" ou "lecitina de soja como emulsificante".
Exemplos Práticos na Consulta Médica
Casos Clínicos Ilustrativos
Caso 1: Pães Industrializados
Pães industriais feitos apenas com farinha de trigo, água, sal e fermento são alimentos processados, enquanto aqueles cujas listas de ingredientes também incluem emulsificantes ou cores são ultraprocessados. Esta distinção é fundamental para orientar pacientes sobre escolhas mais saudáveis dentro da mesma categoria de alimentos.
Caso 2: Cereais Matinais
Aveia cortada simples, flocos de milho simples e trigo triturado são alimentos minimamente processados. Os mesmos alimentos são processados quando também contêm açúcar, e ultraprocessados se também contêm sabores ou cores. Esta progressão ilustra como o mesmo alimento base pode pertencer a diferentes grupos da classificação NOVA.
Orientações para Pacientes
Na prática clínica, é essencial ensinar os pacientes a ler e interpretar rótulos de alimentos. A regra prática é verificar se a lista de ingredientes contém pelo menos um item característico do grupo de alimentos ultraprocessados.
Profissionais de saúde devem enfatizar que não se trata de demonizar todo processamento de alimentos, mas de identificar especificamente os ultraprocessados. Dietas restritas apenas a alimentos não processados seriam menos diversas e menos seguras. Os alimentos se beneficiam e se tornam mais disponíveis quando processados por vários métodos inofensivos de preservação.
Implicações para a Prática Médica
Abordagem Nutricional Baseada em Evidências
A classificação NOVA oferece aos profissionais de saúde uma ferramenta prática e baseada em evidências para orientação nutricional. Diferentemente de abordagens que se concentram apenas em nutrientes isolados, este sistema considera o alimento como um todo, incluindo sua matriz alimentar e os processos aos quais foi submetido.
Esta abordagem holística é particularmente relevante na era atual, onde a indústria alimentícia frequentemente utiliza alegações de saúde e fortificação com nutrientes para mascarar a natureza ultraprocessada de seus produtos. Um produto pode ser fortificado com vitaminas e minerais, mas ainda assim manter as características prejudiciais inerentes ao ultraprocessamento.
Estratégias de Intervenção
Na consulta médica, a identificação de alimentos ultraprocessados deve ser acompanhada de estratégias práticas para sua substituição. Isso inclui:
Educação sobre preparação de alimentos: Ensinar técnicas simples de preparo que utilizem alimentos do grupo 1 com ingredientes culinários do grupo 2.
Planejamento de refeições: Auxiliar na organização de cardápios semanais que priorizem alimentos não processados ou minimamente processados.
Leitura de rótulos: Capacitar pacientes para identificar ingredientes característicos de ultraprocessados durante as compras.
Substituições graduais: Propor trocas progressivas que respeitem preferências e limitações individuais.
Considerações Socioeconômicas
É fundamental reconhecer que o acesso a alimentos não processados ou minimamente processados pode ser limitado por fatores socioeconômicos. Alimentos ultraprocessados são frequentemente mais baratos e acessíveis, especialmente em áreas urbanas de baixa renda.
Profissionais de saúde devem adaptar suas orientações à realidade socioeconômica dos pacientes, priorizando mudanças viáveis e sustentáveis. Isso pode incluir orientações sobre compras em feiras livres, aproveitamento integral de alimentos e técnicas de conservação doméstica.
Perspectivas Futuras e Tecnologia
Ferramentas Digitais de Identificação
O desenvolvimento de aplicativos móveis que escaneiam códigos de barras e interpretam listas de ingredientes está tornando a identificação de alimentos ultraprocessados mais acessível. Um aplicativo criado pela organização sem fins lucrativos OpenFoodFacts, baseada na França, já permite aos consumidores identificar, entre mais de 145.000 produtos embalados, os mais de 75.000 que são ultraprocessados.
Estas ferramentas tecnológicas podem ser particularmente úteis na prática clínica, permitindo que profissionais de saúde demonstrem em tempo real como identificar produtos ultraprocessados durante consultas ou atividades educativas.
Políticas Públicas e Regulamentação
O crescente corpo de evidências sobre os riscos dos alimentos ultraprocessados está influenciando políticas públicas em diversos países. Isso inclui regulamentações sobre rotulagem, restrições de marketing, especialmente para crianças, e políticas fiscais que desincentivem o consumo destes produtos.
Profissionais de saúde têm papel fundamental na advocacia por políticas baseadas em evidências que protejam a saúde populacional. Isso inclui apoio a iniciativas de rotulagem frontal de alimentos, regulamentação de ambientes alimentares escolares e promoção de sistemas alimentares mais sustentáveis.
Conclusões e Recomendações
Síntese das Evidências
A evidência científica atual demonstra claramente que alimentos ultraprocessados não são "alimentos reais". São formulações de substâncias alimentares frequentemente modificadas por processos químicos e então montadas em produtos prontos para consumo hiperpalatáveis, utilizando sabores, cores, emulsificantes e uma miríade de outros aditivos cosméticos.
A maioria é fabricada e promovida por corporações transnacionais e outras gigantes corporativas. Seu ultraprocessamento os torna altamente lucrativos, intensamente atraentes e intrinsecamente prejudiciais à saúde.
Recomendações para a Prática Clínica
1.Incorporar a classificação NOVA na avaliação nutricional: Utilizar este sistema como ferramenta complementar na anamnese alimentar de pacientes.
2.Educar sobre identificação de ultraprocessados: Ensinar pacientes a reconhecer ingredientes característicos destes produtos.
3.Promover padrões alimentares tradicionais: Incentivar o consumo de alimentos não processados ou minimamente processados, preparados com ingredientes culinários processados.
4.Considerar fatores socioeconômicos: Adaptar orientações à realidade individual de cada paciente.
5.Manter-se atualizado: Acompanhar o desenvolvimento de novas evidências científicas e ferramentas tecnológicas na área.
Perspectiva de Saúde Pública
A abordagem baseada na classificação NOVA representa uma mudança paradigmática na compreensão da relação entre processamento de alimentos e saúde. Para profissionais de saúde, compreender e aplicar estes conceitos é essencial para oferecer orientações nutricionais baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis.
O desafio não é eliminar todo processamento de alimentos, mas identificar e reduzir o consumo específico de alimentos ultraprocessados, promovendo simultaneamente o acesso e o consumo de alimentos que compõem padrões alimentares tradicionais e saudáveis.
Referências
Este artigo foi baseado no trabalho científico:
Monteiro, C. A., Cannon, G., Levy, R. B., Moubarac, J. C., Louzada, M. L. C., Rauber, F., ... & Jaime, P. C. (2019). Ultra-processed foods: what they are and how to identify them. Public Health Nutrition, 22(5), 936-941. doi:10.1017/S1368980018003762
Autores:
Carlos A Monteiro (Departamento de Nutrição, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo)
Geoffrey Cannon (Centro de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, USP)
Renata B Levy (Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, USP)
Jean-Claude Moubarac (Département de Nutrition, Université de Montréal)
Maria LC Louzada, Fernanda Rauber, Neha Khandpur, Gustavo Cediel, Daniela Neri, Euridice Martinez-Steele, Larissa G Baraldi, Patricia C Jaime (Centro de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, USP)
Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP; processo número 2015/14900-9).
Este artigo foi elaborado pela equipe Cirmed com base em evidências científicas atuais, visando fornecer informações práticas para profissionais de saúde na identificação e orientação sobre alimentos ultraprocessados.
Para entender mais sobre o assunto, baixe o estudo completo.
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